Editorial

Autores

  • Marcio D’Olne Campos Unicamp

Resumo

SULear é mais um posicionamento crítico em relação às marcas por trás do aparente desvencilhar-se de nações e pessoas com respeito aos longos processos históricos de colonização e subalternidade provados, sobretudo, pelas populações do que se costumava chamar de terceiro mundo, subdesenvolvidos (ou em vias de desenvolvimento), subalternos e populações nativas que vivem de subsistência.

São claras as consequências ideológicas e geopolíticas impregnadas no termo SULear, cunhado por Marcio D’Olne Campos em 1991 para problematizar e, contra-hegemonicamente, opor-se ao termo nortear (norte: acima, superior; sul: abaixo, inferior) fortemente presente entre a população brasileira como sinônimo de orientar-se numa determinada direção - embora encontre-se, por vezes, o sentido figurado de direção moral. Com SULear pretende-se dar valor e visibilidades às perspectivas e às epistemologias do Sul, como forma de contrariar a lógica dominante da episteme eurocêntrica que apresenta o Norte e o sentido do norte como referência universal, qualquer que seja o hemisfério.

A Revista Interdisciplinar Sulear (RIS) surge em 2018 e se mostra muito oportuna em virtude de momentos difíceis do contexto educacional brasileiro que vem se agravando marcadamente nos últimos três anos. É muito importante o modo como a RIS se abre para discussões educacionais pautadas, por um lado, pela interdisciplinaridade e, por outro, pelo valor atribuído à diversidade sociocultural existente no país – dois aspectos nem sempre contemplados por setores educativos mais convencionais. Ainda como reforço, encontramos nessa revista a prioridade para uma educação - seja ela formal ou não formal – engajada na proposta da ‘educação libertadora’ marcada por toda a obra do nosso ilustre Patrono Paulo Freire.

Reiteramos que a RIS se abre ao diálogo interdisciplinar dentro da educação libertadora, do pensamento decolonial e das relações Sul-Sul.

O Dossiê SULear através da Revista Interdisciplinar SULear, abre espaço para uma proposta pioneira e contra-hegemônica na publicação em revista desse conjunto de artigos pautados pela Proposta SULear. Numa articulação interdisciplinar é abordada uma diversidade de temas através da própria decolonialidade e seus aspectos sociais e epistêmicos. Entre outros, esses temas cobrem, por exemplo, epistemologia, educação, geopolítica, geografia, história, linguística, etnografia, museologia e patrimônio, assim como diversos saberes acadêmicos, escolares, indígenas e afrodiaspóricos.

 As propostas de cunho decolonial, mais referidas aos países americanos de língua espanhola e portuguesa, originam-se no denominado “Grupo modernidade/colonialidade (GMC)” de cientistas sociais latino-americanos se consolida a partir de 1998, embora já em 1993 tenha sido editada por Edgardo Lander uma importante obra coletiva: “La colonialidad del saber: eurocentrismo y ciencias sociales. Perspectivas latino-americanas”.

A propósito, nossa Revista Interdisciplinar Sulear já conta no seu Conselho Editorial com dois importantes componentes do GMC: o antropólogo colombiano Arturo Escobar e o semiólogo argentino e professor de literatura Walter Mignolo. Escobar contribui com um dos artigos deste Dossiê, assim como o geógrafo Carlos Walter Porto-Gonçalves que escreveu a introdução da edição brasileira do livro editado por Lander.

Na década de 1990 houve uma importante interlocução a partir da América Latina com Boaventura de Souza Santos, sociólogo, coordenador do Centro de Estudos Sociais (CES, Universidade de Coimbra), de onde irradiam-se importantes contribuições aos estudos descoloniais e as epistemologias do Sulcomo "práticas contra-hegemônicas". O CES tem incentivado movimentos contra a globalização neoliberal, particularmente na luta contra a exclusão social.

Pela importância na educação para a decolonialidade, vale salientar o trabalho da pedagoga Catherine Walsh (Universidad Andina Simón Bolívar, Quito, Equador). Walsh que também integra o GMC, concentra seus estudos sobre as pedagogias decoloniais e nos temas: interculturalidade crítica e decolonialidade, geopolítica do conhecimento, gênero e dos direitos da natureza.

 

*

 

Sobre os assuntos tratados no Dossiê SULear, Marcio D’Olne Campos critica as regras aparentemente práticas para orientação espacial relativa a pontos cardeais provindas do Norte e impropriamente disseminadas no Hemisfério Sul. Estas escondem e condicionam a educação a não ser considerada efetivamente na construção de conhecimento reflexivo dentro de um ‘pensamento autonômico’ como recomenda Arturo Escobar nessa coleção. Contradições enganosas associadas a oposições do tipo Norte/Sul, acima/abaixo, superior/inferior, são geradas, as quais exigem extremo esforço de desnorteamento e decolonização pelo Sul. O termo SULear – proposto em 1991 - problematiza e se opõe ao caráter ideológico do termo NORTEar quando aplicada no Sul, dando visibilidade às perspectivas do Sul numa maneira de contrariar a dominante lógica eurocêntrica do Norte construída no âmbito de uma referência universal.

Contribuições para uma educação formal e não-formal em uma lógica e uma episteme do SUL, pretendem estabelecer uma perspectiva crítica e decolonial aos problemas e contradições apresentadas em textos, artefatos (globos e mapas) e métodos ensinados em escolas e fora delas, assim estendendo essas problematizações para outros espaços sociais.

Arturo Escobar apresenta o estado atual do pensamento crítico latino-americano (PCL) no entrelaçamento dos pensamentos: da esquerda, autonómico e da Terra. Estes três pensamentos evidenciam uma geopolítica do conhecimento, que se esclarece pelo conceito de SULear/Surear. Nisso, os mundos indígenas, afrodescendentes aliados aos decolonialistas têm apoiado com ênfase a descolonização epistémica emergente. Por isso o novo léxico de Abya Yala/Afro/Latino-América.

Abya Yala, Terra madura, Terra Viva ou Terra em florescimento é sinônimo de América como uma autodesignação assumida em contraponto pelos povos originários do continente. Abya Yala tem origem no povo Kuna da Serra Nevada (Colômbia) que vive atualmente na Comarca de Kuna Yala na costa caribenha do Panamá.

Escobar argumenta que hoje temos que cultivar a três vertentes do pensamento, mantendo-as em diálogo contínuo e abandonando qualquer reivindicação universalizadora.

Alexandre Ferraz Herbetta, Alexandre Martins de Araújo, Elias Nazareno e Leandro Mendes Rocha, consideram as relações entre espaço e cultura nos processos de territorialização dentro das escolhas empreendidas pelas comunidades quilombolas na perspectiva do arraigamento ecológico. Ações estas vistas como SULeamentos realizados pelos seus membros. Sobre as escolhas dos lugares de ocupação os autores ancoram-se numa abordagem ecológica que unifica mente, matéria e vida.  

Mariano Baez parte da migração de um milhão de mexicanos migra para os USA a cada ano. Como sonho americano de latino-americanos, ele tem sido documentado pelos diversos meios escritos e de multimídia. Isto beira a ideia de uma colonização de povos do sul sobre o território e a cultura nos USA. O artigo analisa e mostra essa tradição de migrações mexicanas para o norte referindo-se a imagens de filmes emblemáticos.

Cristina M. Fargetti relembra seus dados do eclipse solar entre os jurunas (MT) em 1991 e escreve - motivada pelo centenário da expedição ao eclipse de Sobral (CE, 1919) - sobre a sua expedição nos “despreparos de uma linguista jovem”. Reminiscências e inseguranças lhe permitem percorre eclipses, relações céu-terra e Norte-Sul entre teorias possíveis e olhares nem sempre descompromissados.

Antônio Carlos Silva Jr e Doris Matos, a partir de suas experiências no ensino de espanhol, mostram que a linguística aplicada contemporânea defen­de uma agenda de pesquisa SULeada e que existe alguma produção brasileira de livros didáticos língua espanhola que contemplam as vozes do Sul.

Luiz Carlos Borges enfatiza a importância do contexto, portanto do local (América Latina/Caribe/Abya Yala) na relação entre a museologia e as práticas museais onde convém a aderência aos princípios e procedimentos do SULear numa compreensão crítica, histórico-cultural, epistemológica e ideológica do sentido profundo desse pôr-se ao sul.

Jacqueline Castro Gonçalves e Carlos Roberto Silva de Araújo consideram que nas escolas as lutas das populações indígenas seu reconhecimento e de sua diversidade ocasionaram políticas públicas para o reconhecimento das diferenças. No entanto, os vestígios da colonização e a invisibilidade ainda restam sobre uma historiografia oficial que inferiorizou e oprimiu e continua repercutindo sobre as diversas populações indígenas. O artigo reflete sobre a regulamentação o ensino da cultura indígena nas escolas para trazer a consciência das diferenças no convívio de identidades e culturas e contribuir para a construção da cidadania. Nesse processo, o papel dos materiais didáticos é considerado.

Cleder Tadeu Antão da Silva, Alecir Francisco de Carvalho e Walesson Gomes da Silva trazem a discussão da decolonialidade para o campo da Educação a Distância (EAD) buscando na Pedagogia Decolonial, na Interculturalidade e na Educação Popular o apoio para essa discussão. Calcados principalmente nos aportes teóricos de Candau, Freire e Walsh, os autores buscam articulações entre a EAD e a Educação Decolonial ressaltando os âmbitos ontológicos, epistemológicos e econômico-político-ideológicos.

Marta Ferreira e Jackeline Rodrigues Mendes refletem sobre saberes, escritas e narrativas provenientes de outros contextos invisibilizados pela ordem ocidental. Estão, sobretudo, presentes nas religiosidades afrodiaspóricas dos terreiros de candomblés de manifestações performáticas, orais e escritas nas suas diversas formas de “texto”, as quais se traduzem em atos de SULear seus diálogos nesses espaços e temporalidades. Epistemes Sul-Sul nesse mundo ocidental, retratam sobreviventes de epistemicídios que ainda nos assolam, ainda que nesse trabalho ainda as autoras possam reconhecer nos seus interlocutores bons exemplos de desobediência epistêmica. Essas práticas mostram valores normativos ocidentais vigentes e “letrados” da escola que vão de encontro aos saberes construídos e ressignificados nos espaçostempos afrodiaspóricos dos terreiros de candomblés. Assim ainda se pode reconhecer reações àquela única narrativa válida que esconde tantas outras.

Jair da Costa Júnior e Walter Ude refletem sobre a história colonial no Brasil e seus pressupostos pedagógicos de um saber hegemônico de matriz eurocêntrica, assim como a forma como foram subjugadas e subalternizadas outras matrizes epistêmicas, como os saberes africanos e indígena.

Os autores consideram os fundamentos da educação no Brasil a partir de seus referenciais históricos e da sua constituição como campo de conhecimento para evidenciar a colonialidade do poder em vários níveis, especialmente no universitário. Seu contraponto é uma pedagogia libertária, fundamentada na educação afrodiaspórica e numa leitura crítica e SULeada das configurações sociais e cognitivas para o desmantelamento desse sistema de dominação secular. O exercício de SULear nos aponta horizontes do Sul para decolonizar os espíritos e assim SULear experiências e narrativas criando referências e representações nas quais nos reconheçamos como partícipes da história.

Downloads

Publicado

04-10-2019

Como Citar

Campos, M. D. (2019). Editorial. Revista Interdisciplinar Sulear. Recuperado de https://revista.uemg.br/index.php/sulear/article/view/4139